Revolta dos Haussás, também conhecida como Revolta de Itapuã, é
mais um dos importantes degraus de construção da tradição de
lutas populares baianas. E hoje nós da FAQUIR decidimos rememorar
(na segunda de algumas publicações) este evento em preparação às
comemorações do 2 de Julho, dia da independência do Brasil na
Bahia.
Os haussás (ou
hauçás) são uma etnia africana majoritariamente islamizada que a
muito habita a região interior do Golfo do Benin, norte da área
atualmente compreendida como Nigéria. Diversos povos muçulmanos
dali conviviam ao longo do século 19 – e também antes – com
diversas disputas territoriais e/ou religiosas, entre elas uma jihad
interna entre povos haussás iniciada no ano de 1804, que acabou
exportando diversos traços combativos junto às pessoas escravizadas
enviadas ao Brasil.
Num contexto de
inquietação política entre metrópole e colônia (que culminariam
com a troca de regime de 1822) e do aumento do número de cativos
traficados de África em virtude do aumento da produção açucareira,
é que vai dar base para o ciclo de mais de trinta revoltas de
pessoas escravizadas transcorridas entre 1807 e 1835 no estado da
Bahia. Na época Salvador era uma das cidades com a maior
concentração de negros e mestiços do período – sendo até hoje
a cidade mais negra fora de África –, o que deixava a elite branca
num estado constante de apreensão especialmente após as notícias
que chegavam do Haiti sobre o movimento de independência e
libertação de 1804.
Entre 1805 e 1809 a
Bahia esteve sob governo de um homem conhecido como “Conde da
Ponte” que teve sua administração marcada na história por
medidas mais violentas e restritivas contra escravizados que o comum
de seu tempo, reprimindo sistematicamente tanto manifestações
religiosas e curandeiras de matriz africana quanto pequenos quilombos
da periferia da cidade de Salvador, investindo até mesmo contra
manifestações puramente festivas e/ou pequenos lazeres dessas
pessoas. Outro distintivo marcante do governo do Conde foi seu toque
de recolher que proibia qualquer escravizado de circular após as 21
horas sem autorização escrita de seu proprietário. Foi nesse
contexto opressivo que geminou a primeira semente do que viria a ser
posteriormente a Revolta de Itapuã;
Motivados pelo
desejo de retomar a própria dignidade e liberdade um grupo haussás
que trabalhavam na zona urbana de Salvador começaram a conspirar a
tomada do poder na cidade de São Salvador; a intenção não era
manter este poder e ocupar a cidade, mas sim matar as elites brancas,
adquirir seus navios e iniciar um retorno coletivo à África. Uma
parte menor do movimento, e especialmente aqueles nascidos nas
Américas, objetivavam fundar um reino independente no sertão baiano
de modo a posteriormente levarem seu movimento para libertar as
pessoas escravizadas em Pernambuco.
Extremamente bem
organizados os rebeldes haviam criado antecipadamente um fundo para
adquirir material para confecção de armas e escolhido um
“embaixador” na região de Santo Amaro, no recôncavo baiano.
Depois de investirem contra diversas fazendas da região de Salvador,
os revoltos seguiram para o povoado de Itapuã (hoje bairro da
capital baiana) e posteriormente pela Estrada Real com objetivo de
chegarem ao Recôncavo, infelizmente sendo emboscados e derrotados
por forças milicianas de repressão às margens do Rio Joanes.
A Revolta eclodiu em
fevereiro com alguns incêndios e mortes da elite branca que
permitirem a vários escravizados fugirem para a mata e se
aquilombarem no chamado Sangradouro (mais ou menos onde hoje fica a
Sete Portas), num movimento semelhante ao arquitetado em 1807. Ao fim
do mês cerca de 200 insurgentes tomaram de assalto armações de
pesca baleeira nos limites litorâneos ao norte da capital baiana,
iniciando assim nova etapa estratégica do seu processo de luta.
Infelizmente a
Revolta teve um fim após um senhor de engenho instruir um de seus
escravizados, chamado Germano, a participar das atividades dos
revoltosos para conhecer seus objetivos e sua organização interna.
Foi exposto aos mecanismos repressivos do Estado não só os planos
dos negros como também de indígenas que queriam de volta suas
terras roubadas pelos colonizadores portugueses. O levante definitivo
deveria acontecer no dia do São João e até lá os armamentos
ficariam escondidos no Sangradouro, contudo os destacamentos
militares que foram até lá não encontraram nada além de pontas de
flecha e madeira para os cabos, pois aparentemente houve suspeita de
delação de modo que houve tempo das pessoas debandarem antes de
serem descobertas e capturadas.
Independente de seu fim prematuro a Revolta dos Haussás nos permite um olhar mais aprofundado da sociedade baiana de sua época, demarcando importante marco histórico de transição entre a Revolta dos Búzios (anteriormente trazida pela FAQUIR) e a Revolta dos Malês (que publicaremos em breve). A Bahia é berço de levantes populares desde seu surgimento nas terras ocupadas batizadas de Brasil por seus invasores; nós da Federação Anarquista Quilombo de Resistência somos parte orgulhosa dessa herança de luta nos quilombos, nas aldeias, nos campos e nas cidades, e é por isso mesmo que jamais deixaremos a memória ou legado de nossos mártires ser esquecido ou esvaziado.
"A praça é do
povo como o ceú é do condor" - Castro Alves
PAZ ENTRE NÓS,
GUERRA AOS SENHORES!
Nenhum comentário:
Postar um comentário