sábado, 25 de março de 2023

Boipeba e tantas outras: turismo predatório e ataque aos territórios e comunidades tradicionais do litoral baiano.

 



Em 1500 foi através do litoral baiano que o ataque colonial começou em nossas terras, e essa história não cessa de se repetir em novas formas de exploração dos territórios e comunidades na Bahia. Há muito tempo condomínios, resorts e os mais diversos mega empreendimentos têm se apropriado dos nossos litorais de
forma predatória, explorando pessoas e ecossistemas em nome do lucro. 


No último mês o caso da Boipeba ganhou repercussão pública, um projeto milionário que prevê a ocupação de 20% do território e vem ameaçando a população da ilha, que é parte do Arquipélago de Tinharé no Baixo Sul da Bahia. O projeto turístico-imobiliário visa ocupar uma área equivalente a cerca de 1.700 campos de futebol para a construção de lotes de residências fixas e de veraneio, um condomínio, três pousadas de grande porte, aeroporto, pier para embarcações e até mesmo um campo de golf, em um região que é Área de Proteção Ambiental (APA) e Área de Proteção Permanente (APP).


A principal empresa responsável pelo projeto da Fazenda Ponta dos Castelhanos, que teve início em 2001, é a Mangaba Cultivo de Cocos Ltda., que tem como sócios o banqueiro e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e o herdeiro do Grupo Globo, José Roberto Marinho. Apesar do nome ligado a cultivos locais a população aponta como nunca tiveram intenção de plantar cocos ou mangaba, pelo contrário, a ação da empresa impacta negativamente nos plantios e formas de subsistência tradicionais da ilha. 


A realização dessa construção ameaça um ecossistema muito delicado e complexo. E não falamos apenas da destruição natural, com o desmatamento de vegetação nativa de Mata Atlântica, desequilíbrio e destruição de mangues, áreas de reprodução de guaiamuns e outras espécies nativas, aumento da poluição e uso indevido dos recursos hídricos, mas também destacamos o consequente impacto socioeconômico para quilombolas, pescadores\pescadoras, marisqueiras, extrativistas, e tantos povos que têm seu sustento, cultura e lazer ligados a esse território. Povos que se vêm agora diante do risco de serem inclusive impedidos de acessar as faixas marinhas  que devem ser de uso público. Além do possível aumento de violência, exploração sexual, casos de racismo e xenofobia que geralmente acompanham a implementação desses empreendimentos de luxo em nossos territórios. 


Desde de 2019 o Ministério Público Federal (MPF) recomendou a suspensão do licenciamento (recomendações 01 e 02/2019 do processo 1.14.001.000322/2014-10), contudo em 07 de março deste ano a concessão de licença para a construção aconteceu oficialmente através do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (INEMA), gerando mobilização popular. 


Apesar das promessas de vantagens à comunidade, a população tem se mostrado consciente e resistente à implementação do projeto. Segundo a Pastoral da Terra da Bahia (CPTBA), a comunidade fez desde 2013 um apelo à Secretaria do Desenvolvimento Sustentável, que até hoje não obteve resposta. Assim, diante do descaso estatal, eles têm se articulado realizado abaixo assinados e manifestações, buscando publicizar o processo e com isso somar mais forças a essa resistência. Os moradores relatam também que vêm sofrendo ameaças e intimidações para se afastarem da praia. 


Na audiência do dia 03 de março, realizada na comunidade da Cova da Onça, a principal afetada pela construção do mega empreendimento, a população confrontou a empresa quanto ao projeto, que segundo texto do abaixo assinado online: 


''[...] é cheio de pontos sem clareza dando margem a todo tipo de ajuste na fase de implementação, sem preservação das áreas de apicuns, prevendo corte de área de mangue de 100 metros, loteando e cercando manguezais e áreas indispensáveis à sobrevivência da comunidade, sem delimitação dos caminhos de circulação da população há séculos, sem solução para o acréscimo do incremento de quase 260% de lixo e para os diversos impactos ambientais que ele mesmo aponta, prevendo um mínimo de 152 lanchas circulando por áreas de mergulho dos pescadores e danosas à pesca, três piers, imensa área de campo de golf, gerando na grande maioria uma insegurança enorme [...] '’ 


No dia 14 de março o MPF encaminhou um pedido de revogação da portaria e recomendações para que se interrompa o processo. Mas essa luta ainda está longe de acabar. A reação governamental é de apoio ao empreendimento, Hildécio Meireles, prefeito de Cairu, município do qual o território da ilha faz parte, fez declarações em defesa do projeto ressaltando o caráter turístico do território, o suposto cuidado que o megaempreendimento terá e a seriedade do INEMA e consequentemente a legitimidade da licença concedida pelo órgão.


Além do governo local, o caso conta também com anuência do governador estadual. A despeito dos pedidos de ajuda e da resistência da comunidade diante do projeto, assim como da preocupação e dos apontamentos de risco feitos por organizações como o Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da Bahia (OBSUL), iniciativa composta por diferentes instituições públicas de ensino e pesquisa, o governador estadual Jerônimo (PT) afirma que: 


"É fake essa coisa de que vai ter desmatamento de fauna e flora em extinção. Não tem isso. Todo mundo conhece o que Rui (Costa, ex-governador da Bahia) fez e o que eu farei em respeito ao meio ambiente", declarou, ao salientar que a obra tem pareceres técnicos de órgãos estaduais e federais favoráveis à construção.''


Uma situação que não nos deixa esquecer que os interesses do povo estão longe de ser os mesmos da política partidária. O lucro e os acordos de poder sempre estarão acima do bem viver, comunidades e povos tradicionais são deslegitimados e atacados o tempo todo, tendo seus territórios explorados, destruídos ou vendidos mediante o interesse dos de cima. As instâncias governamentais não cedem direitos ou garantem uma proteção efetiva, é preciso conquistá-la mediante a luta, organização e resistência dos debaixo. 


Esse é um dos casos, mas não é o primeiro e infelizmente não será o último,  as ilhas e territórios do litoral da Bahia há muito sofrem com especulação imobiliária, turismo predatório e empreendimentos com alto impacto socioambiental. Outro exemplo recente é o da comunidade de Trancoso, em Porto Seguro, no Extremo Sul da Bahia, que atualmente também trava uma luta contra a construção de um condomínio de luxo em sua área de mangue, também uma APA e APP. Assim como não podemos deixar de lembrar do Morro de São Paulo, ilha também localizada no Baixo Sul da Bahia, que há muitos anos é cenário de uma privatização absurda das praias e do afastamento e exploração das comunidades que sempre estiveram ali. Não esquecemos também da comunidade quilombola de Conceição de Salinas, onde foi realizada a última Jornada de Agroecologia da Teia dos Povos da Bahia, que enfrenta um processo de perseguição e tentativa de apropriação do seu território sob a mesma lógica turística de exploração.  


Esses projetos têm devastados territórios e sujeitado comunidades, que cada vez mais vão sendo empurradas para longe das praias ou condicionadas a ficar mediante a ocupação de subempregos, vinculadas a essas iniciativas privadas, perdendo a soberania sob suas terras, mangues e mares, e consequentemente sua  autonomia e modos tradicionais de subsistência e bem viver. Os governos não irão nos proteger, é preciso que nos mantenhamos atentas e atentos a esses processos, colaborando com as ações de resistência e construindo a cada dia o poder popular, o único realmente comprometido com a preservação da vida de nossas terras, águas e povos. 


Referências:

    

PETIÇÃO - Proteja a Ilha de Boipeba (BA) contra megaempreendimento que ameaça natureza e comunidade:    https://secure.avaaz.org/community_petitions/po/inema_e_demais_autoridades_responsaveis_proteja_a_ilha_de_boipeba_ba_contra_megaempreendimento_que_ameaca_natureza_e_comunidade_1/


PETIÇÃO - COVA DA ONÇA - UM DIAMANTE QUE NÃO PRECISA SER LAPIDADO. (SOS Boipeba/Cairú/Bahia/Brasil)https://secure.avaaz.org/community_petitions/po/MUNDO_Ministerio_Publico_da_Uniao_ONGs_orgaos_do_Estado_da_Bahia_Protecao_as_questoes_ambientais_e_de_comunidades_tradic/?aPsthcb

 

Comunidades da Ilha de Boipeba/BA lutam para defender território de mega projeto imobiliário:https://cptba.org.br/comunidades-da-ilha-de-boipebaba-lutam-para-defender-territorio-de-mega-projeto-imobiliario/

    

"Somos um espaço turístico e o Inema é um órgão muito sério", defende prefeito sobre empreendimento em Boipeba : https://www.bahianoticias.com.br/municipios/noticia/33313-somos-um-espaco-turistico-e-o-inema-e-um-orgao-muito-serio-defende-prefeito-sobre-empreendimento-em-boipeba


Jerônimo rechaça informação de que haverá desmatamento para construir empreendimento em Boipeba : https://www.metro1.com.br/noticias/politica/134250,jeronimo-rechaca-informacao-de-que-havera-desmatamento-para-construir-empreendimento-em-boipeba


Nota pública do  OBSUL - Observatório Socioterritorial do Baixo Sul da Bahia: https://drive.google.com/file/d/1CrKtJSHwjiI-QLGbBv5fjt9bW-5wkafW/view 


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