Neste primeiro de maio, nós da FAQUIR gostaríamos de demarcar alguns elementos sobre o avanço da precarização do trabalho nos últimos anos e os atravessamentos específicos a respeito da realidade baiana. Seguindo a tendência global do capitalismo neoliberal (de ataque aos direitos trabalhistas) o Brasil passou recentemente por um desmonte da CLT e da Previdência, para além do avanço da terceirização após a sua legalização generalizada. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) realizada pelo IBGE no 4º trimestre de 2022 (de outubro a dezembro, a Bahia tem o 3º rendimento médio mensal mais baixo do país para trabalhadoras e trabalhadores. Com 5 em cada 10 (52,1% ou 3,2 milhões) ocupando posições de trabalho informal. Devido a esses retrocessos, e com a redução dos postos de trabalho formal num cenário em que o aumento do custo de vida exerce uma pressão constante e crescente, as trabalhadoras e trabalhadores são forçados a se submeterem a condições cada vez mais precárias para sequer subsistir, mas não passivamente.
Um exemplo local recente foi a "revolta dos cordeiros" no carnaval de Salvador deste ano, onde foram denunciadas as péssimas condições de trabalho e remuneração que persistem no mercado milionário que é a indústria do carnaval. Após 2 anos sem a festa, apesar do termo de ajuste de conduta firmado pelo Sindicato da categoria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e as entidades patronais, as e os trabalhadores que fizeram o perímetro dos blocos de carnaval seguem submetidos a péssimas condições de trabalho. Houve queixas dos e das profissionais quanto ao tratamento dado por organizações carnavalescas, como relatos de falta de equipamento (luvas, protetores de ouvido, etc.) e banheiros em alguns casos.
Durante o carnaval desse ano se tornou notícia na mídia os valores recebidos pela modelo Gisele Bündchen, com um cachê de R$ 10,5 milhões de reais pela sua presença em camarotes carnavalescos, bancada pela empresa de cerveja Brahma. Uma lembrança cruel do abismo que nos separa enquanto classes, de que, a medida que os e as debaixo se esforçam exaustivamente pelo mínimo, nossa sociedade valoriza e investe desproporcionalmente em pessoas escolhidas para simbolizar uma elite. Uma imagem que, inclusive, é estrategicamente usada para incentivar que o consumo continue girando essa roda.
No caso das e dos cordeiros na Bahia, se por um lado houve um pequeno reajuste do pagamento mínimo estabelecido em relação ao último TAC, que ainda assim gira em torno do valor vergonhoso de 60 reais diários, se observou em contrapartida a redução da entrega de água e na qualidade dos alimentos ofertados em comparação a anos anteriores. Sujeitos a esses fatores, e sobrecarregados com a superlotação de alguns blocos, houve momentos em que os trabalhadores chegaram ao ponto de abandonarem seus postos em meio a festa como forma de protesto e autopreservação.
Lembramos também que é impossível se falar em precarização hoje sem citar os trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos (atualmente estimados em mais de 1,5 milhões); motoristas e entregadores\entregadoras tem se organizado para exigir direitos para suas respectivas categorias, enfrentando a resistência das plataformas e a indiferença e morosidade dos governos. Diversas mobilizações de suas categorias reivindicando melhores condições de trabalho foram efetuadas nos últimos anos, como os breques dos apps realizados desde 2020. As articulações de coletivos e associações de trabalhadores têm tido recentemente algum sucesso em pressionar as forças institucionais responsáveis por receber suas demandas, conseguindo marcar reuniões para apresentar as condições e reivindicações das categorias na busca pela regulamentação das atividades de forma a garantirem seus direitos trabalhistas.
Para além das recorrentes ou novas formas de exploração do trabalho, o capitalismo nunca parou de empregar a sua forma mais extrema quando tem oportunidade; apesar de ilegal a mais de um século, a realidade é que a escravidão nunca acabou totalmente no Brasil. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), foram resgatados 918 trabalhadores em condições semelhantes à de escravidão no país entre janeiro e março de 2023 (maior número dos últimos 15 anos, de acordo com o órgão). Na Bahia, segundo o Ministério do Trabalho (MT), o casos de trabalho análogo a escravidão aumentaram cerca de 290% de 2019 até 2023. As explicações vinculadas a esse aumento giram em torno do agravamento das condições de subsistência com o cenário pandêmico, que submete as pessoas a considerar propostas de trabalho cada vez mais precárias, e também a um enfraquecimento de ações de combate pelos órgãos responsáveis, com a situação de cortes de orçamento e a falta de auditores fiscais do trabalho que se agravou nos dos últimos anos.
Em março deste ano de 2023, trabalhadores foram resgatados nessas condições em Barra Grande, na Península de Maraú, litoral sul da Bahia. O grupo trabalhava em uma obra de construção e não é um caso isolado nesse cenário de turismo predatório e especulação imobiliária na Bahia. Comentamos em nosso último texto de conjuntura, da seção ''De olho no Agora'', sobre a situação de ataque que as comunidades da Ilha de Boipeba estão enfrentando graças a tentativa de instalação de um mega empreendimento turístico, também destacamos como esse é um processo recorrente principalmente nos litorais baianos. Para além de todo impacto ambiental, o preço sociocultural para as comunidades é gigante, e a questão da renda e trabalho é um elemento central nesse cenário. Muitas das empresas tomam inclusive como argumento positivo que estarão gerando mais empregos as comunidades e geração de renda com o turismo, mas sabemos que esse tipo de turismo predatório atua por um lado retirando as condições tradicionais e autônomas de subsistência das comunidades e por condicionando essa população a uma dependência dos megaemprendimentos, com cargos precarizados e muitas vezes materiais e simbolicamente degradantes (exotismo das culturas tradicionais, subserviência aos turistas, situações que envolvem hipersexualização, racismo, xenofobia, etc.).
Recentemente um caso específico teve grande repercussão na mídia, quando 207 trabalhadores (dos quais 196 eram baianos) foram resgatados em vinícolas na Serra Gaúcha, a serviço das empresas como a Salton, Aurora e Garibaldi e contratados pelo empresário baiano Pedro Augusto de Oliveira Santana. Enganados com promessa de boa remuneração e condições de trabalho fora levados ao outro lado do país e submetidos a toda sorte de maus tratos e coerções, obrigados a longas jornadas laborais e mantidos em condições precárias de alojamento e alimentação, privados de seus direitos mais básicos. A demarcação de origem dos trabalhadores baianos nos chama atenção nesse cenário, diante da realidade histórica de migração que trabalhadores do norte e nordeste fizeram e fazem em direção às promessas de trabalho e melhores condições de vida no sul e sudeste do país, gerando um processo de hierarquia nacional que está intimamente ligado a uma série de violências nas nossas relações não apenas trabalhistas.
Esses elementos ficam visíveis nas infelizes falas do vereador Sandro Fantinel (atualmente sem partido pois foi expulso do Patriota após repercussão do caso) que em discurso na câmara de Caxias do Sul, declarou que as empresas não deveriam mais contratar ''aquela gente lá de cima", em referência a baianos, e sim dá preferência aos argentinos que seriam, segundo ele, mais "limpos, trabalhadores e corretos''. Além disso, o vereador ainda afirmou que "a única cultura que os baianos têm é viver na praia tocando tambor". Por mais que essa declaração tenha gerado comoção pelo nível de repercussão pública que ganhou, esses são estigmas perpetuados no imaginário social nos mais diversos espaços e situações cotidianas. Os inúmeros estereótipos que recaem sobre a população baiana, de preguiça e ''vida fácil'', são impregnadas pelo racismo e xenofobia estrutural que constituem hierarquias nacionais que ainda são bem vivas na nossa realidade. Sabemos que nossa população trabalha exaustivamente, e não apenas na Bahia, mas também como mão de obra explorada na construção e crescimento do sul e sudeste do país, e ainda assim somos submetidos a humilhações morais, que na fala do vereador se mostram ligadas a elementos raciais, étnicos , culturais e religiosos.
Enquanto vemos a prevalência de uma população masculina como trabalhadores explorados em muitos desses casos, as mulheres infelizmente também não estão livres de vivenciarem situações de trabalha análogo a escravidão, principalmente quando lidamos mais diretamente com o setor das trabalhadoras domesticas, que enfrenta certamente um processo de subnotificação e dificuldade, talvez ainda maior de reconhecimento, devido ao nível de complexidade das relações trabalhistas nesse ambiente domestico. Questões inclusive afetivas atravessam a forma como as trabalhadoras são chantageadas e coagidas a permanecer em situações degradantes e de pouco ou nenhum acesso a direitos trabalhistas. Algumas trabalhadoras são literalmente tratadas como posse de outras famílias, sendo ''herdadas'' por gerações mais novas e remontando a continuidade de relações escravistas brasileiras. Um exemplo disso foi o caso que veio a tona em 2022, de uma senhora de 62 anos resgatada na Bahia, que além de trabalhar os últimos 8 anos sem receber salários, conviveu com maus-tratos e foi vítima de roubos da própria aposentadoria e empréstimos feitos em seus nome pela filha dos patrões.
Os casos que trouxemos aqui são apenas alguns em meio ao mar de exploração ao qual são submetidos trabalhadoras e trabalhadores diariamente. Com esses elementos específicos sobre a Bahia afirmamos também que é importante destacar como nossas relações trabalhistas e de classes são atravessadas diretamente por questões territoriais, etárias e especialmente raciais e de gênero. O Estado e capital seguem unidos e instrumentalizados contra o população que tem como únicos bens sua força de trabalho, as articulações das elites financeira seguem moldando as decisões da elites políticas, e infelizmente vivenciamos um cenário onde a classe trabalhadora segue cada dia mais desunida, somos individualizadas e individualizados a fim de sermos mais facilmente controlados.
Por isso, nesse dia de hoje, enquanto anarquista fazemos questão de ecoar a memória dos mártires que fizeram do 1 de maio um dia de luto e luta, mas também de demarcar as lutas cotidianas de cada uma/um de nós que acorda cedo e dorme tarde, enfrenta conduções lotadas, almoços corridos e uma série de impossibilidades de lazer e descanso. Nós que carregamos o funcionamento material da sociedade em nossos braços, nós trabalhadoras e trabalhadores. E se insistem em estereotipar nossos momentos de dança, música e alegria, nossa busca por possibilidades de afeto e descanso em meio às rotinas cansativas, que possamos lembrar que o que eles tomam como sinônimo de preguiça, nos entendemos como símbolo de insubmissão. Que possamos manter vivas as práticas de resistência e as ações que alimentam nossas energias e esperanças enquanto povo explorado pelo capital
Um salve para cada trabalhadora e trabalhador baiano !
Com as e os debaixo, construir e lutar, poder popular !
Federação Anarquista Quilombo de Resistencia - BAHIA
Algumas fontes e referências :
https://revistaafirmativa.com.br/revolta-dos-cordeiros-e-prejuizo-dos-ambulantes-as-condicoes-de-trabalho-no-carnaval-de-salvador-2023/
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/05/01/na-bahia-trabalhadores-tem-o-3o-salario-mais-baixo-do-pais-veja-perfil.ghtml
https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/resgate-de-pessoas-em-trabalho-analogo-a-escravidao-cresce-em-290-na-bahia/
https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/trabalhadores-em-situacao-de-escravidao-sao-resgatados-em-barra-grande/?_ga=2.113647623.1024560965.1679346920-1023662395.1666559197
https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/01/vereador-do-rs-que-discursou-contra-baianos-e-alvo-de-pedidos-de-cassacao-mpt-apura-apologia-ao-trabalho-escravo.ghtml
https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/04/28/resgatada-apos-trabalho-analogo-a-escravidao-na-ba-se-assusta-apos-tocar-em-mao-de-reporter-receio-de-pegar-na-sua-mao-branca.ghtml
https://www.raizesfm.com.br/2023/04/13/trabalhadores-por-aplicativos-no-brasil-chegam-a-quase-17-milhao/
https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mais-de-60-dos-motoristas-e-entregadores-de-aplicativo-sao-negros-diz-estudo/
https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2023/02/17/cordeiros-de-carnaval-na-bahia-reclamam-de-discriminacao-e-pagamento.htm