sábado, 9 de março de 2024

O agronegócio na Bahia em nova ofensiva colonial


 Está conflagrada na Bahia a ofensiva sanguinária contra os povos que enfrentam a estrutura fundiária colonial e seus corpos são os alvos diretos:

04/09/22 Gustavo Silva da Conceição, Sarã Pataxó, 14 anos, foi morto no Território Indígena Comexatiba município de Prado com um tiro de fuzil na nuca.[1] 
17/01/23 Os jovens pataxós Nawir Brito de Jesus, 17 anos, e Samuel Cristiano do Amor Divino, de 25 anos, foram mortos por policial no município de Itabela, quando se dirigiam a uma ocupação de seu povo.[2]
17/08/23 Mãe Bernadete, 72 anos, é morta a tiros no quilombo Pitanga dos Palmares, no município de Simões Filho.[3]
21/12/23 Cacique do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe Lucas Kariri-Sapuyá, de 31 anos é morto em uma emboscada no município de Pau Brasil[4]
21/01/24 Pajé Nega Pataxó, do povo Pataxó-Hã-Hã-Hãe é morta no município de Potiraguá em ofensiva de fazendeiros da região,[5] e laudo atesta que a arma usada é de um filho de fazendeiro.[6]
  Em todos esses casos,  os mortos são aqueles que tem enfrentado a expulsão histórica dos povos indígenas de suas terras, que tem afirmado uma outra relação de ancestralidade, cuidado e preservação de suas Terras e Territórios; e os assassinos, sejam eles os mandantes ou os executores,  são os agentes do agronegócio como fazendeiros, policiais e pistoleiros contratados.
  O agronegócio na Bahia participa de 28% do PIB baiano[7], e isso em linguagem capitalista dá um indício da fatia de poder que ele possui nesse estado. Se o governo não move uma palha contra essa mortandade, se policiais se fazem de guardiões das propriedades coloniais, latifundiárias e predadoras do meio ambiente, é porque isso tudo gera e garante muito lucro; é porque a elite empresarial e política da Bahia em grande medida é composta pelo próprio agronegócio. 
  Se insurgir contra os sequestros de toda ordem que o povo preto, pobre e indígenas sofrem a séculos fere os interesses das elites que vendem a imagem da Bahia feliz do carnaval, e que com essa mesma alegria lucrativa matam quem se recusa a seguir nessa dança. Trazer a luta contra o racismo para a Terra, materializar esse combate frente a concentração de terras, ofende o pudor burguês da propriedade privada, escapa ao ordenamento jurídico que faz coro a esses privilegiados desde a primeira invasão em 1500.
  Esse lucro que o agronegócio tem trazido aos empresários e políticos baianos se dá ao custo não só dos povos, mas também de a toda biodiversidade da fauna e da flora. São as condições de vida como um todo que estão sendo desmanteladas para que o capital gerado fique nas mãos de pouquíssimas pessoas (apenas 1,4% das grandes e médias empresas do agronegócio no Brasil – que faturam mais de R$ 10 milhões por ano – foram responsáveis por 77,2% do valor comercializado pelo setor em 2022[8]).  No oeste baiano o agronegócio desmatou “51 mil campos de futebol” de vegetação nativa no cerrado entre 2015 e 2021[9], o que fez com que esse mesmo cerrado perdesse quase 2 bilhões de litros de agua por dia para a produção de soja e gado[10].  No norte, no Vale do São Franscisco, a fruticultura de exportação também tem deixado o seu rastro de destruição e exploração: ao mesmo tempo que exaure os recursos hídricos e do solo, exploram agricultores familiares, que devido a inflação e perca de condições de produção em suas próprias terras se veem empurrados a aceitar condições de trabalho degradantes em tais fazendas, que por sua vez ano a ano bate recorde de exportação de frutas que seus próprios trabalhadores não tem condições de comprar.[11]
  Parte dessas mortes descritas acima foram orquestradas pelo movimento ruralista surgido  aqui na Bahia chamado "Invasão zero",e que se já espalha em vários estados da Brasil. Esse movimento é a ponta de lança da ofensiva ruralista que promete acabar com qualquer retomada popular e tornar a expulsar os povos das ocupações de terra.[12] 
  É urgente abandonar a lógica de conciliação de classes que o PT uma vez mais tenta alastrar. Como se fosse possível chegar a um meio-termo pacífico entre aqueles que matam para lucrar e os povos que lutam por justiça, pelas suas terras ancestrais e pelo direito de viver dignamente para além das margens do lucro. Não é a criação de mais uma companhia da PM (que é a saída encontrada por Jerônimo para esse escândalo) que fará com que essa violência acabe, que os ruralistas abram mão de seu quase monopólio da terra. 
  Pelo contrário, somos nós nos articulando entre as nossas e nossos, fortalecendo os povos em seus Territórios, lutando ombro a ombro sem  a tutela do Estado ou de partidos, que conseguiremos aumentar as chances de enfrentar autonomamente essa investida assassina.
  
  Nós por nós, porque quem negocia com os assassinos, tem parte na mortandade.
   
  


quinta-feira, 7 de setembro de 2023

ANTES DA INDEPENDÊNCIA, A MORTE: faces da necopolítica na Bahia


Hoje, data eleita pela narrativa hegemônica de independência do país nos da FAQUIR refletimos sobre as faces da necropolítica baiana neste ultimo mês. 

Para o povo de santo, Agosto é um mês sagrado. Para os terreiros keto, esse período tem Obaluaiê como um de seus regentes, é um período de comemoração e também muita cautela. Afinal, esse orixá está associado diretamente às doenças e à cura. Para o povo banto, é o período do nkisi Kaviungo que, ora é tido como representação do estado adoecido do indivíduo ora é visto como aquele que anuncia a proximidade da morte. Não à toa é no mês dessas sagradas entidades que se revela o avançado estado de adoecimento da Bahia que, através da política de extermínio encabeçada pela polícia militar, tornou-se zona de morte para a população negra, pobre e indígena. 

A Bahia inicia o oitavo mês de 2023 com 31 mortes em oito dias causadas por ações policiais nas cidades de Salvador, Camaçari e Itatim. Sob pressão, o petista Jerônimo Rodrigues, fala em “excessos” e “equívocos” por parte da Polícia Militar e se reúne com seus pares no Farol da Barra para convocar militares da reserva e anunciar chegada de novas viaturas para reforçar seu esquadrão da morte. 

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública traz que, entre 2015 e 2022, o número de mortes resultantes de intervenção policial na Bahia aumentou em 313%, transformando a polícia baiana na mais letal do Brasil. Esse dado macabro soma-se às notas da Secretária de Segurança Pública que define às vítimas da PM como “Homicidas e estupradores”, e aos discursos de Jerônimo Rodrigues exaltando os “200 anos de história da Polícia Baiana” e acusando jornalistas de desmancharem a imagem da polícia militar. 

O Governo do Estado da Bahia, após 16 anos sob tutela dos petistas, conseguiu desenvolver uma metodologia de extermínio baseada na “guerra às drogas” e no apagamento de dados. Afinal, ainda ecoa a metáfora do artilheiro usada por Rui Costa, hoje ministro da Casa-Civil. O farto orçamento que vem sendo paulatinamente empregado para “modernizar” a polícia tem em vista aumentar as ferramentas de repressão. É nítido que, parafraseando o rapper ALendasz, “Aqui na Bahia quase todo dia o racismo decide quem morre e quem vive”.

Também em agosto, os adeptos das religiões de matriz africana que carregam herança banto saúdam Kitembo – ou Tempo – o Rei de Angola. Enraizado na Gameleira Branca ou representado pela bandeira branca hasteada nos telhados, é através desse nkisi que se unem o céu e a terra; os reinos ancestrais; o presente, o passado e o futuro. Kitembo traz consigo uma ideia de conexão entre as dimensões terrenas e espirituais, além de evidenciar os ciclos do tempo. Esses arranjos que são trazidas na figura de tão imponente nkisi, configuram-se pautas importantíssimas para todos os povos indígenas. 

Os debates que correm nas esferas jurídicas do Estado Brasileiro sobre o Marco Temporal têm colocado uma forte pressão sobre os movimentos indígenas de todo país, que ao mesmo tempo veem-se cada vez mais abandonado por movimentos e partidos políticos da base eleitoreira. Uma crítica surge sobre a forma como o governo tem tratado não só essa pauta, mas expõe como o recém-criado Ministério do Povos Indígenas está esvaziado de suas funções enquanto é atacado e depredado pelas agendas de políticos bolsonarista e ruralista.

Na Bahia, dados importantes do IBGE mostram como o estado possui a segunda maior população indígena do Brasil. Contudo, menos de 8% dessa população vive em localidades indígenas – seguindo os critérios do IBGE. É essa população que convive com situações como a do território pataxó de Barra Velha, que há meses está cercado por pistoleiros, sob ataque frequente de fazendeiros e descaso dos órgãos competentes. Ilustrando esse odioso quadro a visita indesejada de Ricardo Salles, deputado bolsonarista e relator da CPI do MST, que aproveitou o momento para intimidar moradores.

Mesmo com as promessas feitas por Luiz Inácio, parece que a pauta indígena continua sendo conveniente à esquerda eleitoreira apenas em momentos pontuais. A fome, a malária e os garimpeiros continuam ameaçando os Yanomâmis no Norte do país. Meio ano depois das denúncias apuradas e com o esfriamento midiático da cobertura do caso, um relatório – intitulado “Nós ainda estamos sofrendo” – produzido pela própria comunidade mostra que a situação dos indígenas continua precária. Lideranças de territórios indígenas na Bahia fazem coro às reivindicações dos povos organizados em todo território nacional, exigindo melhores condições de saúde, educação, segurança e celeridade nos processos de demarcação de terras. 

Para o povo quilombola, foi um período de perdas enormes. Recebemos com  indignação a notícia do assassinato de Mãe Bernadete, liderança do Quilombo Pitanga de Palmares e ialorixá em sua comunidade de terreiro Há 6 anos, Flávio Gabriel,  seu filho, conhecido como Binho do Quilombo, também foi assassinado. Uma família marcada pela violência contra os povos do campo, quilombolas,  indígenas e todos e todas aquelas que lutam por manter a autonomia de seus territórios fora do alcance dos latifundiários, da especulação imobiliária e de grileiros de toda sorte.

Dez dias depois, o jovem José Wiliam Santos Barros, de 26 anos, foi assassinado na Comunidade Quilombola do Alagadiço, pela Polícia Militar. No relato dos moradores a crueldade e covardia fica evidente, Willian foi alvejado nas costas e morreu na hora, não houve possibilidade de reação ou diálogo. A polícia alega que o disparo foi feito pois o jovem estaria “empinando a moto”, a absurdez de uma declaração dessas não cabe em palavras. 

Essa não é uma história nova no Brasil, essa não é uma história nova na Bahia. A disputa por território puxa o gatilho, o racismo religioso invisibiliza sua morte. A mais de 500 anos nossos territórios seguem sendo saqueados, mercantilizados e destruídos. A morte ronda esses territórios, seus moradores e aqueles que lutam pelos direitos dessa população. Através do medo procuram fragilizar a luta, desmontar as famílias, apagar as histórias. O Estado segue compactuando com o capital. Violência, crueldade e impunidade ainda são usadas nos mesmo tópicos quando o assunto é a luta do povo do campo

Encerrando o mês de Agosto louvamos o dia destinado ao nkisi Angorô e ao orixá Oxumarê, divindades com grande semelhanças. Para os fieis, Angorô e Oxumarê remetem a fertilidade das chuvas, a ligação dos céus e da terra, às transformações e mudanças dos ciclos, e principalmente, a renovação. Que as águas abençoadas pela energia de transformem a dor e a raiva em organização e vitória, que se renove o espírito de luta do povo. 

Setembro traz em seu início um novo paradigma, a violência que subjuga as comunidades perífericas não vem apenas pela via Estatal. O Comando Vermelho toma de assalto o poderio do crime organizado, a consequência é da população no confronto brutal entre facções rivais e as forças repressivas do Estado na Bahia. Entretanto, vale lembrar que esse cenário não é novidade para a população soteropolitana, transforma-se em noticia ao adentrar as zonas nobres da cidade, vira estardalhaço quando os estilhaços chegam nos residenciais dos bairros nobres . Para os de baixo, o confronto e a violência sempre estiveram presentes.

A história baiana é marcada pela violência, aqui os chicotes dos senhores de engenho nunca cessaram suas atividades. O campo e cidade são marcados por sangue e suor. Contudo, a dor, do cansaço e da tristeza nunca foram impedimentos da revolta. Aqueles que caem sob o julgo feroz do Estado e seus dirigentes, ao contrário do que imaginam, nunca são esquecidos ou apagados da história. A ancestralidade cultuada pelo povo de santo ensina, protege e reaviva àqueles que lutam por uma vida digna. Nessa terra abençoada convivem a luta e o luto, a morte e a resistência, a perda e a memória. 


Na Terra de Todos os Santos,o povo persiste no enfrentamento para que todos santos tenham terra. 

sábado, 2 de setembro de 2023

CICLO DE FORMAÇÕES LIBERTÁRIAS - SETEMBRO


 

Ialorixá Bernadete Pacifico - MAIS DO QUE PESAR, REVOLTA !



Foi com indignação que nós da Faquir-CAB recebemos a notícia do assassinato de Mãe Bernadete. 


 Há 6 anos, Flávio Gabriel,  seu filho, conhecido como Binho do Quilombo, também foi assassinado. Uma família marcada pela violência contra os povos do campo, quilombolas,  indígenas e todos e todas aquelas que lutam por manter a autonomia de seus territórios fora do alcance dos latifundiários, da especulação imobiliária e de grileiros de toda sorte.

Essa não é uma história nova no Brasil, essa não é uma história nova na Bahia. A disputa por território puxa o gatilho, o racismo religioso invisibiliza sua morte. 

Mãe Bernadete era uma liderança do Quilombo Pitanga de Palmares,  fazia parte da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas e era uma ialorixá em sua comunidade de terreiro. A violência desferida contra ela, contra a sua família e contra a sua comunidade é a tentativa de intimidação vinda diretamente daqueles que atentam contra o bem viver do nosso povo 

 A liderança quilombola havia solicitado proteção de seu território e dos que lá residem ao Estado, visto que sofriam com ameaças constantes de madeireiros presentes na região. No entanto, seu apelo não foi suficiente, e mais uma vez, a negligência estatal e ineficiência de suas instituições mostram que o Estado é cúmplice, e falha ao ignorar o pedido de proteção dos territórios sagrados dos povos quilombolas. Depois da morte, lideranças institucionais fazem seus discursos, mas nós sabemos que para as e os debaixo a justiça do Estado tarda e falha.

Nos solidarizamos com os seus familiares, com o Quilombo Pitanga de Palmares, com a CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas e com os povos de terreiro.

A mais de 500 anos nossos territórios seguem sendo saqueados, mercantilizados e destruídos. Lutar por eles representa na grande maioria das vezes um risco iminente de morte. E não qualquer morte - 22 tiros, tiros no rosto, na frente dos netos -  a morte exemplar pra gerar medo.

Mas o povo não recua, nossos lutos e lutas convivem sob o mesmo solo. Que a memória de Mãe Bernadete ecoe, ao contrário do que eles querem, como mais revolta e resistência. ✊🏽🔥

quinta-feira, 15 de junho de 2023

OPINIÃO ANARQUISTA: Retomar a terra contra o agro e o garimpo genocidas !

 


O Marco Temporal é uma tese elaborada pelos ruralistas atrelados ao Estado que busca negar garantias conquistadas com muita luta dos povos indígenas. A tese coloca que só devem ser demarcadas terras indígenas ocupadas antes de 1988, ano da Constituição Federal. A partir disso, qualquer território retomado depois dessa data passa a ser ilegal. 

Com o Marco Temporal, os ruralistas garantem ainda mais liberdade para expandir suas milícias e alastrar violência contra os povos indígenas. Longe de ser uma tese com alguma base jurídica, constitucional ou lógica, o marco temporal é nada mais que a perpetuação do pacto colonial que fundou o Brasil. Pacto esse que os povos indígenas enfrentam a mais de 500 anos, e que continua vigente independente do partido que está no poder.

A PL 2903 é ainda mais abrangente que o Marco Temporal, ela contém propostas de flexibilizar a presença de exploração do garimpo e da grilagem nas terras indígenas, retirando autonomia dos territórios para tomada de decisões. Nas ultimas semanas, vimos uma série de derrotas na esfera institucional, desde a retirada da autonomia do ministério dos povos indígenas, até uma CPI do MST.  A derrota eleitoral de Bolsonaro não freou nem um centímetro o avanço dos ruralistas sobre os territórios. A representatividade institucional nada pôde fazer quanto à aprovação do Marco na câmara, e não há motivos para esperar nada de diferente do poder executivo ou do judiciário. 

Os povos indígenas já deram o recado. Houveram trancamentos de rua, manifestações e acampamentos em diversos estados do país contra a aprovação do Marco. São mais de 500 anos de luta, e nada nunca foi dado de mão beijada pelos de cima. Em 1988 os poucos direitos que agora estão sendo ameaçados foram conquistados com facões e flechas apontados para os delegados constituintes, e assim será até que o o agronegócio seja destruído e o direito a terra seja garantido. 

A Coordenação Anarquista Brasileira chama a todas e todos para estar ombro a ombro com os povos indígenas na luta pela terra. Precisamos barrar o Marco Temporal e defender cada palmo de território retomado. Apenas organizadas é que venceremos o colonialismo capitalista e construiremos juntas um mundo onde caibam vários mundos.

Para isso, apostamos nas táticas de ação direta, fazendo nós por nossas mãos, tomando as ruas, ocupando prédios e rodovias, sem esperar que os de cima se compadeçam de nossas dores e demandas. Defendemos que todos os povos oprimidos se juntem aos povos indígenas para conquistar o direito à vida digna e derrotar o Marco Temporal!

BRASIL É TERRA INDÍGENA!
MARCO TEMPORAL É GENOCÍDIO!
RETOMAR A TERRA CONTRA O AGRO E GARIMPO GENOCIDAS!

Coordenação Anarquista Brasileira - CAB 

Junho, 2023

segunda-feira, 1 de maio de 2023

1 de Maio - Bahia




Neste primeiro de maio, nós da FAQUIR gostaríamos de demarcar alguns elementos sobre o avanço da precarização do trabalho nos últimos anos e os atravessamentos específicos a respeito da realidade baiana. Seguindo a tendência global do capitalismo neoliberal (de ataque aos direitos trabalhistas) o Brasil passou recentemente por um desmonte da CLT e da Previdência, para além do avanço da terceirização após a sua legalização generalizada. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC) realizada pelo IBGE no 4º trimestre de 2022 (de outubro a dezembro, a Bahia tem o 3º rendimento médio mensal mais baixo do país para trabalhadoras e trabalhadores. Com 5 em cada 10 (52,1% ou 3,2 milhões) ocupando posições de trabalho informal. Devido a esses retrocessos, e com a redução dos postos de trabalho formal num cenário em que o aumento do custo de vida exerce uma pressão constante e crescente, as trabalhadoras e trabalhadores são forçados a se submeterem  a condições cada vez mais precárias para sequer subsistir, mas não passivamente.

Um exemplo local recente foi a "revolta dos cordeiros" no carnaval de Salvador deste ano, onde foram denunciadas as péssimas condições de trabalho e remuneração que persistem no mercado milionário que é a indústria do carnaval. Após 2 anos sem a festa, apesar do termo de ajuste de conduta firmado pelo Sindicato da categoria com o Ministério Público do Trabalho (MPT) e as entidades patronais, as e os trabalhadores que fizeram o perímetro dos blocos de carnaval seguem submetidos a péssimas condições de trabalho. Houve queixas dos e das profissionais quanto ao tratamento dado por organizações carnavalescas, como relatos de falta de equipamento (luvas, protetores de ouvido, etc.) e banheiros em alguns casos. 

Durante o carnaval desse ano se tornou notícia na mídia os valores recebidos pela modelo Gisele Bündchen, com um cachê de R$ 10,5 milhões de reais pela sua presença em camarotes carnavalescos, bancada pela empresa de cerveja Brahma. Uma lembrança cruel do abismo que nos separa enquanto classes, de que, a medida que os e as debaixo se esforçam exaustivamente pelo mínimo, nossa sociedade valoriza e investe desproporcionalmente em pessoas escolhidas para simbolizar uma elite. Uma imagem que, inclusive, é estrategicamente usada para incentivar que o consumo continue girando essa roda.

No caso das e dos cordeiros na Bahia, se por um lado houve um pequeno reajuste do pagamento mínimo estabelecido em relação ao último TAC, que ainda assim gira em torno do valor vergonhoso de 60 reais diários, se observou em contrapartida a  redução da entrega de água e na qualidade dos alimentos ofertados em comparação a anos anteriores. Sujeitos a esses fatores, e sobrecarregados com a superlotação de alguns blocos, houve momentos em que os trabalhadores chegaram ao ponto de abandonarem seus postos em meio a festa como forma de protesto e autopreservação. 

Lembramos também que é impossível se falar em precarização hoje sem citar os trabalhadores e trabalhadoras de aplicativos (atualmente estimados em mais de 1,5 milhões); motoristas e entregadores\entregadoras tem se organizado para exigir direitos para suas respectivas categorias, enfrentando a resistência das plataformas e a indiferença e morosidade dos governos. Diversas mobilizações de suas categorias reivindicando melhores condições de trabalho foram efetuadas nos últimos anos, como os breques dos apps realizados desde 2020. As articulações de coletivos e associações de trabalhadores têm tido recentemente algum sucesso em pressionar as forças institucionais responsáveis por receber suas demandas, conseguindo marcar reuniões para apresentar as condições e reivindicações das categorias na busca pela regulamentação das atividades de forma a garantirem seus direitos trabalhistas.

Para além das recorrentes ou novas formas de exploração do trabalho, o capitalismo nunca parou de empregar a sua forma mais extrema quando tem oportunidade; apesar de ilegal a mais de um século, a realidade é que a escravidão nunca acabou totalmente no Brasil. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), foram resgatados 918 trabalhadores em condições semelhantes à de escravidão no país entre janeiro e março de 2023 (maior número dos últimos 15 anos, de acordo com o órgão). Na Bahia, segundo o  Ministério do Trabalho (MT), o casos de trabalho análogo a escravidão aumentaram cerca de 290% de 2019 até 2023. As explicações vinculadas a esse aumento giram em torno do agravamento das condições de subsistência com o cenário pandêmico, que submete as pessoas a considerar propostas de trabalho cada vez mais precárias, e também a um enfraquecimento de ações de combate pelos órgãos responsáveis, com a situação de cortes de orçamento e a falta de auditores fiscais do trabalho que se agravou nos dos últimos anos. 

Em março deste ano de 2023, trabalhadores foram resgatados nessas condições em Barra Grande, na Península de Maraú, litoral sul da Bahia. O grupo trabalhava em uma obra de construção e não é um caso isolado nesse cenário de turismo predatório e especulação imobiliária na Bahia. Comentamos em nosso último texto de conjuntura, da seção ''De olho no Agora'', sobre a situação de ataque que as comunidades da Ilha de Boipeba estão enfrentando graças a tentativa de instalação de um mega empreendimento turístico, também destacamos como esse é um processo recorrente principalmente nos litorais baianos. Para além de todo impacto ambiental, o preço sociocultural para as comunidades é gigante, e a questão da renda e trabalho é um elemento central nesse cenário. Muitas das empresas tomam inclusive como argumento positivo que estarão gerando mais empregos as comunidades e geração de renda com o turismo, mas sabemos que esse tipo de turismo predatório atua por um lado retirando as condições tradicionais e autônomas de subsistência das comunidades e por condicionando essa população a uma dependência dos megaemprendimentos, com cargos precarizados e muitas vezes materiais e simbolicamente degradantes (exotismo das culturas tradicionais, subserviência aos turistas, situações que envolvem hipersexualização, racismo, xenofobia, etc.).

Recentemente um caso específico teve grande repercussão na mídia, quando 207 trabalhadores (dos quais 196 eram baianos) foram resgatados em vinícolas na Serra Gaúcha, a serviço das empresas como a Salton, Aurora e Garibaldi e contratados pelo empresário baiano Pedro Augusto de Oliveira Santana. Enganados com promessa de boa remuneração e condições de trabalho fora levados ao outro lado do país e submetidos a toda sorte de maus tratos e coerções, obrigados a longas jornadas laborais e mantidos em condições precárias de alojamento e alimentação, privados de seus direitos mais básicos. A demarcação de origem dos trabalhadores baianos nos chama atenção nesse cenário, diante da realidade histórica de migração que trabalhadores do norte e nordeste fizeram e fazem em direção às promessas de trabalho e melhores condições de vida no sul e sudeste do país, gerando um processo de hierarquia nacional que está intimamente ligado a uma série de violências nas nossas relações não apenas trabalhistas.

Esses elementos ficam visíveis nas infelizes falas do vereador Sandro Fantinel (atualmente sem partido pois foi expulso do Patriota após repercussão do caso) que em discurso na câmara de Caxias do Sul, declarou que as empresas não deveriam  mais contratar ''aquela gente lá de cima", em referência a baianos, e sim dá preferência aos argentinos que seriam, segundo ele, mais "limpos, trabalhadores e corretos''. Além disso, o vereador ainda afirmou que  "a única cultura que os baianos têm é viver na praia tocando tambor". Por mais que essa declaração tenha gerado comoção pelo nível de repercussão pública que ganhou, esses são estigmas perpetuados no imaginário social nos mais diversos espaços e situações cotidianas. Os inúmeros estereótipos que recaem sobre a população baiana, de preguiça e ''vida fácil'', são impregnadas pelo racismo e xenofobia estrutural que constituem hierarquias nacionais que ainda são bem vivas na nossa realidade. Sabemos que nossa população trabalha exaustivamente, e não apenas na Bahia, mas também como mão de obra explorada na construção e crescimento do sul e sudeste do país, e ainda assim somos submetidos a humilhações morais, que na fala do vereador se mostram ligadas a elementos raciais, étnicos , culturais e religiosos.  

Enquanto vemos a prevalência de uma população masculina como trabalhadores explorados em muitos desses casos, as mulheres infelizmente também não estão livres de vivenciarem situações de trabalha análogo a escravidão, principalmente quando lidamos mais diretamente com o setor das trabalhadoras domesticas, que enfrenta certamente um processo de subnotificação e dificuldade, talvez ainda maior de reconhecimento, devido ao nível de complexidade das relações trabalhistas nesse ambiente domestico. Questões inclusive afetivas atravessam a forma como as trabalhadoras são chantageadas e coagidas a permanecer em situações degradantes e de pouco ou nenhum acesso a direitos trabalhistas. Algumas trabalhadoras são literalmente tratadas como posse de outras famílias, sendo ''herdadas'' por gerações mais novas e remontando a continuidade de relações escravistas brasileiras. Um exemplo disso foi o caso que veio a tona em 2022, de uma senhora de 62 anos resgatada na Bahia, que além de trabalhar os últimos 8 anos sem receber salários, conviveu com maus-tratos e foi vítima de roubos da própria aposentadoria e  empréstimos feitos em seus nome pela filha dos patrões. 

Os casos que trouxemos aqui são apenas alguns em meio ao mar de exploração ao qual são submetidos trabalhadoras e trabalhadores diariamente. Com esses elementos específicos sobre a Bahia afirmamos também que é importante destacar como nossas relações trabalhistas e de classes são atravessadas diretamente por questões territoriais, etárias e especialmente raciais e de gênero. O Estado e capital seguem unidos e instrumentalizados contra o população que tem como únicos bens sua força de trabalho, as articulações das elites financeira seguem moldando as decisões da elites políticas, e infelizmente vivenciamos um cenário onde a classe trabalhadora segue cada dia mais desunida, somos individualizadas e individualizados a fim de sermos mais facilmente controlados. 

Por isso, nesse dia de hoje, enquanto anarquista fazemos questão de ecoar a memória dos mártires que fizeram do 1 de maio um dia de luto e luta, mas também de demarcar as lutas cotidianas de cada uma/um de nós que acorda cedo e dorme tarde, enfrenta conduções lotadas, almoços corridos e uma série de impossibilidades de lazer e descanso. Nós que carregamos o funcionamento material da sociedade em nossos braços, nós trabalhadoras e trabalhadores. E se insistem em estereotipar nossos momentos de dança, música e alegria, nossa busca por possibilidades de afeto e descanso em meio às rotinas cansativas, que possamos lembrar que o que eles tomam como sinônimo de preguiça, nos entendemos como símbolo de insubmissão. Que possamos manter vivas as práticas de resistência e as ações que alimentam nossas energias e esperanças enquanto povo explorado pelo capital 


Um salve para cada trabalhadora e trabalhador baiano !

Com as e os debaixo, construir e lutar, poder popular !

Federação Anarquista Quilombo de Resistencia - BAHIA


Algumas fontes e referências :

 https://revistaafirmativa.com.br/revolta-dos-cordeiros-e-prejuizo-dos-ambulantes-as-condicoes-de-trabalho-no-carnaval-de-salvador-2023/ 

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2023/05/01/na-bahia-trabalhadores-tem-o-3o-salario-mais-baixo-do-pais-veja-perfil.ghtml

https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/resgate-de-pessoas-em-trabalho-analogo-a-escravidao-cresce-em-290-na-bahia/

https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/trabalhadores-em-situacao-de-escravidao-sao-resgatados-em-barra-grande/?_ga=2.113647623.1024560965.1679346920-1023662395.1666559197

https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2023/03/01/vereador-do-rs-que-discursou-contra-baianos-e-alvo-de-pedidos-de-cassacao-mpt-apura-apologia-ao-trabalho-escravo.ghtml

https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2022/04/28/resgatada-apos-trabalho-analogo-a-escravidao-na-ba-se-assusta-apos-tocar-em-mao-de-reporter-receio-de-pegar-na-sua-mao-branca.ghtml

https://www.raizesfm.com.br/2023/04/13/trabalhadores-por-aplicativos-no-brasil-chegam-a-quase-17-milhao/

https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/mais-de-60-dos-motoristas-e-entregadores-de-aplicativo-sao-negros-diz-estudo/

https://www.uol.com.br/carnaval/noticias/redacao/2023/02/17/cordeiros-de-carnaval-na-bahia-reclamam-de-discriminacao-e-pagamento.htm


 

O agronegócio na Bahia em nova ofensiva colonial

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